terça-feira, 11 de junho de 2013

O debate entre Emerson e Robinson no final do século XIX

À esquerda, Peter Henry Emerson. À direita, Henry Peach Robinson.
"Ao longo do último quarto do século XIX, os fotógrafos e cientistas Henry Peach Robinson e Peter Henry Emerson estabeleceram um debate sobre o estatuto da fotografia que mobilizou, de forma inédita, os salões e os fotoclubes, onde geralmente eram trazidas a público as novas descobertas e debatidas as últimas tendências estéticas. Sede de importantes concursos e exposições fotográficas, os fotoclubes tornaram-se centros de divulgação e também de legitimação do pensamento científico e artístico.

O debate entre Robinson e Emerson polarizou-se em torno da definição do lugar da fotografia no contexto das artes plásticas e da sua relação com os saberes científicos da época. De modo inaugural, esses fotógrafos deram corpo a um debate acerca da natureza da fotografia que, repetidamente, haveria de voltar à cena em outras conjunturas.

O debate entre Robinson e Emerson gravitou em torno de alguns temas centrais, que são, por si, reveladores desse lugar epistemológico da fotografia, entre os quais contam: a particularidade da fotografia enquanto meio de expressão, relativamente aos materiais e técnicas que mobiliza; a relação entre fotografia e artes plásticas e, por contigüidade, entre a avaliação estética da imagem fotográfica e os cânones da história da arte; a qualificação da imagem fotográfica relativamente ao seu vínculo com o referente externo; a relação entre imagem fotográfica e as proposições científicas da época, principalmente em relação à fisiologia da percepção.

Pela primeira vez as indagações sobre o meio são formalizadas de modo sistemático, incorporando às suas premissas hipóteses teóricas originadas em outras áreas – como a física e a química –, e estéticas, convergindo várias proposições originalmente pertencentes ao ideário pictórico e literário. Certamente, o ponto de partida que ensejou as especulações de Robinson e Emerson é o da relação disjuntiva, da concepção desse hiato que separa os fenômenos naturais e os objetos culturais tanto da imagem percebida quanto da imagem representada. Parte-se, portanto, da problematização de uma questão muitas vezes negligenciada pelas correntes realistas, prioritariamente voltadas para a celebração das qualidades icônicas da imagem fotográfica.

Por meio da promoção de uma prática fotográfica direta, realizada espontaneamente, como defendeu Emerson, ou do uso da montagem e das estratégias de cenarização e de direção das personagens desenvolvidas por Robinson, ambos estavam mobilizados para obter imagens coincidentes com a imagem percebida, um programa que implicou o reconhecimento do modo de atualização dos sentidos e, por decorrência, a participação ativa do corpo na operação perceptiva. Não por acaso as divergências entre Emerson e Robinson no campo da fotografia referem-se diretamente às proposições científicas elaboradas pelos fisiologistas da percepção, à teoria do foco diferencial elaborada pelo físico e fisiologista alemão Hermann von Helmholtz, no caso de Emerson, e às proposições sobre a constituição do espaço – efetivo e diegético –, e sobre a memória, no de Robinson.

Muito embora mobilizando procedimentos técnicos distintos, esses dois fotógrafos perseguiram o ideal de obtenção de uma imagem coincidente com a imagem perceptiva. Mesmo Robinson, defensor de procedimentos francamente artificiais, como as encenações realizadas em estúdio e as montagens obtidas no laboratório fotográfico, estava voltado para a superação das deficiências do processo fotográfico que resultavam na criação de imagens de natureza distinta das imagens percebidas. Esta referência comum ao modelo da percepção é que os caracteriza como promotores de um sujeito fisiológico – imagens formadas na retina (Emerson) – e das imagens mentais, mais abstratas, porém igualmente sensíveis (Robinson). Pelas suas posições diferenciais, é possível identificar, na estética de Emerson, a promoção de um tipo de sujeito-tela, de certo modo passivo, sobre o qual viriam inscrever-se os traços do mundo externo, ao passo que Robinson cria uma imagem de origem mental, mais projetiva e produtiva, que incorpora outras determinações espaciais e temporais ao aqui e agora do instantâneo.


"Ricking the reed" de Peter Henry Emerson (1886)
Emerson

Após descartar a hipótese realista, por considerá-la falsa em relação à natureza, o fotográfo e médico Peter Henry Emerson identificou sua posição estética com a dos pintores impressionistas, preferindo, contudo, nomeá-la sob o rótulo de naturalismo: Para nós Impressionismo significa a mesma coisa que Naturalismo, mas o fato de tal palavra permitir ao artista uma interpretação tão ampla, até absurdamente ampla, nos faz preferir o termo Naturalismo, porque ele permite que a obra sempre possa ser comparada a uma Natureza padrão. (EMERSON, 1890, p. 22)

Do mesmo modo que William Turner e os pintores impressionistas, entre eles James Whistler, que o influenciaram diretamente, Emerson está envolvido com as impressões obtidas direta e instantaneamente da natureza. Tal perspectiva implica a consideração do modo como a natureza é percebida e, portanto, a valorização do corpo e dos órgãos dos sentidos – em especial do olho e da retina. Esta passagem do real – do objeto em si – para o naturalmente percebido – o objeto tal como aparece – estabelece uma distância, ou um nível inicial de abstração, entre a imagem percebida e a coisa em si e, na seqüência, entre a imagem percebida e sua representação visual. A partir deste momento, olhar uma imagem significa indagar-se sobre o modo como foi percebida e sobre os procedimentos de representação visual.

Nas suas formulações, Emerson esforça-se por manter a precedência da natureza sobre essas duas operações, criando um tipo de lastro primordial sobre o qual viriam inscrever-se as percepções e os signos. Pode-se dizer, neste sentido, que a sua modernidade está no modo como articulou as concepções naturalistas à especificidade do processo criativo.

É isto, então, que entendemos por Naturalismo: que todas as sugestões devem vir da natureza e todas as técnicas devem ser utilizadas para possibilitar a mais verdadeira impressão da natureza. (EMERSON, 1890, p. 24)

Trata-se, neste caso, de uma concepção naturalista que atribui à percepção o lugar de verdade, para o qual devem voltar-se o trabalho de arte e as representações em geral. Esta prioridade concedida à experiência sensível insere-se no contexto mais amplo da mutação radical dos balizadores que informam a prática fotográfica, o que significou o abandono dos procedimentos atualizados pela câmera escura e do que eles secretavam, em especial o estabelecimento de uma separação entre espaço exterior e interior e a configuração de um sujeito vazio.

Após enunciar seu pressuposto – “nossa proposição é a de que a imagem deve ser a transposição de uma cena como vista por um olho humano normal” (EMERSON, 1890, p. 97) e estabelecer seu objetivo – “o que objetivamos na arte é, portanto, a aparência do fenômeno” (EMERSON, 1890, p. 97) –, a atenção de Emerson dirige-se à compreensão dos fenômenos visuais, em especial dos gaps que separam a percepção efetiva de uma percepção analítica ou ideal. Nesse seu esforço de compreensão do ato de visão, Emerson sustentou-se nas mais recentes e influentes pesquisas desenvolvidas pelos fisiologistas dele contemporâneos, tais como: os fenômenos da aberração esférica e do ponto cego propostos por Helmholtz (EMERSON, 1890, p. 109); as escalas de sensibilidade do olho, elaboradas por Gustav Theodor Fechner; o fenômeno da visão binocular, estudado por Le Conte, e as teses de Hering sobre a sensibilidade do olho às cores, todas explicitadas e discutidas no capítulo central deste seu livro, sintomaticamente intitulado Phenomena of Sight, and Art Principles deduced therefrom que, na sua primeira parte, recebeu o seguinte subtítulo: Physical characters of the eye as an optical instrument.

No enfrentamento da questão fisiológica, Emerson valeu-se, principalmente, das teses sobre a natureza da percepção visual desenvolvidas por Helmholtz, em especial da sua teoria do foco diferencial, segundo a qual o ato de ver implica a eleição de uma área central da cena, percebida de modo nítido, e o ligeiro desfocamento das áreas periféricas. Após sustentar que o ponto central é o mais importante fator no estudo da visão e da arte, Emerson cita textualmente o fisiologista: “todas as demais partes da imagem retiniana, exceto aquela formada na área central, são vistas de modo imperfeito”, ao que acrescenta, “portanto, a imagem que recebemos através do olho é como um quadro minuciosa e laboriosamente finalizado no centro, porém apenas esboçado nas suas margens”. (EMERSON, 1890, p. 102)

Na sua versão fotográfica, a suposição de Helmholtz transformou-se em procedimento estético. Empenhado em obter uma aproximação máxima entre a imagem ocular e a imagem fotográfica, Emerson propõe que também as fotografias devessem apresentar foco apenas na região central e margens ligeiramente desfocadas.

A esses critérios formais, Emerson acrescentou uma série de outros argumentos com o objetivo de salvaguardar a especificidade e a autonomia da fotografia frente às iconografias tradicionais. No contexto da sua concepção de fotografia direta, a câmera fotográfica será tomada como uma espécie de caixa preta inviolável, do mesmo modo que a chapa impressionada, à qual nada deve ser acrescentado ou removido. Dessa maneira, a garantia de especificidade e originalidade do meio está no respeito à lógica operativa do aparelho, sempre concebido no seu formato convencional.

Emerson enumera os seguintes critérios, todos compatíveis com os critérios da prática fotográfica posteriormente nomeada de direta e pura e coincidentes com os princípios da imagem verídica: 1. A fotografia é um meio independente, com suas próprias características inerentes e é, potencialmente, uma grande forma artística; 2. Os controles que ela oferece são adequados para expressar a visão; 3. O efeito emocional e psicológico da fotografia se encontra na imagem sem retoques produzida pela lente, tal como registrada pelo material sensível; 4. Esse efeito não deve nunca ser estragado pelo retoque ou pela cópia combinada; 5. A composição não tem nada a ver com regras ou fórmulas (NEWHALL, 1989, p. 56).

Igualmente distante do realismo e do idealismo, a posição estética defendida por Emerson, diretamente derivada do modo de funcionamento da visão, entra em colapso, corroída exatamente onde parecia mais sólida, nos seus pressupostos científico-fisiológicos. Após difundir ampla e entusiasticamente suas teses, tendo conquistado, nesse itinerário, um enorme contingente de adeptos, Emerson fez uma retratação peremptória das suas posições, mantendo-se por vários meses afastado da cena social e cultural. Em um panfleto tornado público em 1891, intitulado The death of naturalistic photography, desilude-se com as possibilidade científicas da fotografia, vista como um meio que conta com recursos por demais limitados e que não oferece as possibilidades de controle e de plasticidade que desejava.

Estavam delineados, contudo, os parâmetros estéticos da fotografia direta e pura, que viriam a exercer uma forte influência sobre o movimento pictorialista em sua versão menos intervencionista e, posteriormente, sobre as posições modernistas defendidas por Paul Strand e Alfred Stieglitz no pós-guerra.


"Fading away" de Henry Peach Robinson (1858) 
Robinson

As impressões compostas realizadas pelo pintor e fotógrafo Henry Peach Robinson são o resultado de uma criteriosa montagem, no laboratório, de vários negativos tomados individualmente. Obedecendo a um estudo preliminar, esses negativos, gerados em diferentes momentos e lugares, são ampliados um a um, de modo a compor, ao final, uma cena aparentemente prosaica.

Essas montagens, que obtiveram enorme repercussão nos salões europeus de fotografia entre as décadas de 1860 e 1880, representavam cenas alegóricas e personagens literárias, freqüentemente apresentadas de modo moralista. Na mesma direção do sueco Oscar Rejlander, seu predecessor e inspirador, as imagens de Robinson trazem a marca da estética difundida nas academias de arte, o que lhes valeu as designações de classicistas e de fotógrafos-artistas.

Historicamente empregadas com o intuito de minorar os efeitos ocasionados pela baixa sensibilidade e pelo reduzido contraste do material fotográfico, que inviabilizavam, por exemplo, o registro numa única chapa das altas e baixas luzes de uma cena, o emprego da montagem estendeu-se, com Robinson, a situações mais complexas, como a síntese de vários instantes e a obtenção de perspectivas impróprias ao aparelho fotográfico.

De natureza conceitual e técnica, as operações que envolviam a realização das impressões compostas “perfaziam as mesmas operações da mente” (CRAWFORD, 1979, p. 55) –, como observou o historiador Willian Crawford a respeito das impressões compostas realizadas por Rejlander –, na seleção e na disposição dos elementos percebidos, além de possibilitarem o controle tonal dos elementos individualmente retratados. O uso dessas impressões facultava igualmente a Robinson corrigir as distorções perspécticas ocasionadas pelo aparelho fotográfico , conferindo às imagens fotográficas as mesmas propriedades visuais das cenas e, o que é original, constituindo-as de modo a que também elas operassem por saltos, associando imagens originadas em diferentes momentos e lugares, à semelhança das imagens mentais.

A edição de imagens tomadas em diferentes momentos e lugares permitiu a Robinson interferir diretamente na natureza do código e na instantaneidade da tomada, criando a possibilidade de modulação sobre os vetores espaciais e temporais da representação.

Robinson não se furtou a alterar os procedimentos fotográficos habituais com vistas a intensificar o realismo das suas imagens, segundo uma concepção realista de viés experimental, referida à aparência final da imagem. Em seu livro Pictorial Effect in Photography, publicado em 1869, Robinson diz:

O fotógrafo jamais deve permitir que sua criatividade o leve a representar, através de truques, qualquer cena que não se encontre na natureza. Se ele o fizer, está violentando sua arte, porque sabe-se que o resultado final representa um objeto ou coisa que existiu por um período de tempo diante da sua câmera. Não obstante, todas as formas de artifício, truque ou prestidigitacão estão à disposição do fotógrafo, de modo que eles pertencem à sua arte e não falseiam a natureza. (apud CRAWFORD, 1979, p. 56-57)

Tal versão do realismo, que parte das aparências e convoca as potências do falso, possibilitou-lhe investigar as possibilidades técnicas e expressivas do meio sem preconceitos, elaborando novas sintaxes visuais e relacionando a fotografia a outras práticas artísticas. Esse projeto, que teve por fim investir as fotografias de Robinson das mesmas qualidades formais e também das mesmas propriedades da cena real, combina elementos singulares do realismo e do idealismo, traduzidos na sua intenção de manter-se fiel aos fatos, e uma igual preocupação com o modo de funcionamento da mente. Existe em comum nessas formulações uma prioridade conferida ao elemento intelectual, manifesta na ênfase conferida ao elemento subjetivo na apreensão do entorno, prioridade que se traduz esteticamente na mobilização de procedimentos abertamente intervencionistas e artificiais.

Ao acontecimento, Robinson interpõe a análise desse acontecimento, sua contextualização relativamente a outros acontecimentos, contíguos ou afastados, e a sua interpretação subjetiva, referida não mais aos estímulos visuais, mas ao trabalho da mente, também corpóreo. Essas proposições encontram sua formulação estética nas determinações múltiplas e diacrônicas das impressões compostas. Não por acaso, dentre as contribuições científicas da época, proporcionadas principalmente pelos fisiologistas, Robinson identificou-se especialmente com as concepções correntes sobre a natureza do espaço extensivo e sobre o aspecto associativo do real.

Robinson foi, em verdade, um artista conceitual que concebeu previamente suas imagens e realizou-as em concordância com princípios intelectuais. De modo bem diverso do pretendido por Emerson, para quem Robinson era um “pretensioso e seu livro a quintessência de falácias literárias e anacronismos na arte” (NEWHALL, 1989, p. 55), seus tableaux-vivants precederam e de certo modo anteciparam as encenações teatrais e as instalações realizadas atualmente por influentes artistas, do mesmo modo que sua concepção do trabalho artístico como produção de artifício que pode e deve associar procedimentos da poesia, do teatro e da fabulação mítica antecipa, do ponto de vista da lógica da produção imagética não-verídica, o hibridismo e a crescente virtualização recorrentes no campo das práticas artísticas contemporâneas.

Ainda que de modo tímido, essas proposições começam a anunciar um tipo de flexibilização do ato de olhar, cada vez menos referido às condições empíricas e à presença de um referente preexistente. A visão, mais do que o olhar, constitui o território de experiência desse sujeito. Encarnada, irremediavelmente atada ao corpo, essa visão que se descola da retina tem um papel fundamental no processo de conformação do sujeito moderno. A abstração do ato de olhar implica um distanciamento da imagem retiniana e, no contexto da história da arte, o abandono dos projetos estéticos fundados primordialmente nos estímulos sensoriais, como o de Emerson e o dos impressionistas. Uma tal passagem pode ser comparada à que foi realizada no século XX pelos movimentos artísticos de vanguarda, como o cubismo e o surrealismo, e também pela arte como idéia de Marcel Duchamp e pela arte conceitual da década de 1960.

No decorrer da segunda metade do século XIX, os fotógrafos-cientistas Edward Muybridge, Etienne-Jules Marey e Albert Londe, tomando partido das recentes tecnologias dos filmes, puderam decompor o movimento em vários instantes, revelando momentos da trajetória dos móveis que são vedados à percepção direta. De modo semelhante, em muitos aspectos, aos trabalhos realizados por Robinson e por Rejlander, esses fotógrafos-cientistas criaram uma estética fotográfica em que contava uma crescente abstração da visão. Ao revelarem cenas e intervalos temporais imperceptíveis ao olho, suas imagens situam-se na fronteira do até então invisível. Dessa vez, de uma invisibilidade imanente."

Fonte: "Passagens da Fotografia" - Antonio Fatorelli