Retrato de Lewis Payne (1865), de Alexander Gardner |
Em meio a jornais antigos, eis que me deparo com a edição número 351 do jornal Folhetim, publicado em outubro de 1983. Totalmente amarelado pelo tempo, lá está um texto de autoria de Leda Tenório da Motta denominado "Um órgão de sentidos - Nota sobre o olhar", que segue abaixo para que ele não se perca:
"O olhar do outro desorganiza a nossa percepção. Porque nos olhos do outro lemos. Menos que alma talvez, ou talvez mais. Lemos que o outro nos lê.
Movimento em que podemos nos perder, por isso desviiamos o olhar. Perder a função, ou se perder na função. Uma outra possibilidade de esquivar é olhar sem ver. E inversamente.
A vista pode cegar
Sair do campo do outro. Sair do quadro. Como, na Carta sobre os Cegos, Diderot lembra o recuo de pavor, diante de um espelho côncavo, daquele que vê reverter em sua própria direção a ponta da espada que está empunhando. Assim também, da cavidade espelhada dos olhos do outro, como uma lâmina afiada, voltada contra nós, vemos vir o nosso olhar. Então, saímos da frente do espelho.
Em A Câmara Clara, último Roland Barthes, ensaio sobre a fotografia, à vista de uma coleção de fotos que lhe são caras, pelos mais diferentes motivos, pessoais, pontuais, o autor está olhando nos olhos. Sem desviar o olhar.
A vista, escrevia Barthes num texto autobiográfico, é o mais mágico dos sentidos. Leia-se: o mais farto de sensos, o mais polissêmico. Um foco criativo, um caleidoscópio. Não apenas o órgão dos sentidos mas um órgão de sentidos.
E, neste sentido, a vista pode cegar. O que se vê interpreta-se, revolve-se constantemente, revoga-se. Nos olhos do outro, já somos um outro. O outro de nós mesmos. Um personagem que relutamos em encarar. Alice no espelho está às voltas com essa perturbação. A aventura perigosa de transformar-se a cada passo, inventar-se, subtrair-se, na frente de cada espelho. Alice deixa o espelho falar. Sobressalta-se. Enxerga como o outro a vê.
E eis como, para Barthes, se deveria olhar uma fotografia. Simplesmente porquê em toda foto, derramado por nós mesmos, num ponto qualquer, podemos encontrar o nosso olhar. De toda fotografia, alguém, algo de nosso - daí a perturbação -, nos espia.
Na pintura não há espreita. A Gioconda nos fala, e como. Mas felizmente não nos olha. Diante de um quadro, diz Lacan num seminário, a vista repousa-se do olhar. A função da arte é bem essa, atenuar a nossa relação com o real.
Mas antes artifício que arte, entre as formas ditas visuais de expressão, a fotografia parece ser a única a cravar em nós o seu olhar aterrador.
Na verdade, basta olhar para ver. Ir ao ponto. O punctum, dirá Barthes, uma marca como a do lápis, depositada por uma "ponta", sinal mínimo mas cortante. Uma ferida focal.
Nenhuma palavra em francês parece convir, vir recobrir esse "ponto" que no latim é ainda, a um só tempo, picada, orifício, mancha, corte. Incitação que se lança da cena da fotografia, se realmente se quiser ver, feito uma flecha que vem espicaçar. Sem essa ferida, escreve Barthes, não há olhar.
Haverá visão talvez, uma maneira de captar a cena, rodeando a ferida, de investir o quadro com o ponto de vista. Maneira, num certo sentido, de perder a cena de vista. Mas não a acuidade enigmática da mancha, que tolda a vista, no momento exato em que solicita o olhar.
Haverá studium, uma outra operação, mais geral, sem nenhuma cuidade particular. O "estudo" latino é uma aplicação por assim dizer desinteressada, anódina. Uma colocação do nosso olhar, não o olhar. Analisada, a cena da fotografia transporta-se para outra parte, troca-se por outra cena, o fulcro é recolhido fora dela, num discurso. Não seria exagero dizer que ele se perde.
Haverá "reportagem", digamos. Quando o punctum se fecha sobre si mesmo, resiste, paradoxal: ele nos vem da foto, se formos a ele. Ele nada reporta.
Nicarágua 1979, foto de Koen Wessing |
Necessariamente singular
Numa fotografia do holandês Wessing, feita na Nicarágua, em 1979, à época da revolução, sobre o calçamento esburacado de uma rua, coberto por um lençol branco, está o corpo inerte de uma criança. Ao lado do corpo, a foto mostra os pais da criança morta, e amigos que rodeiam o cadáver.
Sem comentários a foto. Insuportável - por isso indizível - aos olhos de Barthes, apenas sensível, a desolação que lhe vem de um pé descalço da criança, e de um certo gesto da mãe que avança para cobrir o corpo com um outro lençol. Por que esse lençol?
Desolação que lhe vem ´e que no entanto é sua. Ferida que o olhar reabre, algo de doloroso que volta, sem propriamente se manifestar, como um recalque. O abandono de um pé descalço - e o gesto da mãe. Dizer o quê?
Falar da revolução, certamente. Maneira de banalizar a cena, já tão comum em si. Mas o que está na fotografia certamente não é a revolução. A cena é necessariamente singular. Todo acontecimento é único. O cultural é adjacente ao quadro - e desta forma supérfluo. Ele vem amparar a desolação. O studium é gregário, ele orienta, distrai o olhar.
Numa outra foto de Alexander Gardner, um retrato do norte-americano Lewis Payne, que em 1865 tentou assassinar o secretário de Estado Seward. Payne aparece tal como foi fotografado em sua cela, antes da execução.
Um caso clínico, por certo, o jovem personagem da fotografia. Se não histórico. Mas o "ponto" é: "ele vai morrer". E ao mesmo tempo: "ele está morto".
Na fotografia, por força de uma estranha condensação, o que será já foi. E o que se estampa brutalmente na pose é essa equivalência absurda. O plasma, nos olhos fotografados de Payne, de um passado absoluto, já futuro - no presente.
Não mais o "isso ou aquilo", alternando, gramaticalmente. "Isso e aquilo", concomitantemente, sem passagem. Não mais a lógica, mas uma poética.
O tempo da fotografia é sem intervalo, sem medida. Na realidade, ali não há mais tempo. A fotografia desconhece o tempo, como o sonho, onde os objetos colidem, na desordem, em outra ordem.
Que o fotografado esteja morto ou não, e por mais que a fotografia pareça fixar o movimento, surpreender a atualidade, a vida, em toda foto, suspensos, estamos mortos. "Diante da foto de minha mãe criança, eu me digo: ela vai morrer: eu estremeço como o psicótico de Winnicott, na iminência de uma catástrofe que já aconteceu (...) Toda fotografia é essa catástrofe."
Há um morto em cada fotografia, como numa trama de horror. E, contraditoriamente, por um efeito espectral que é próprio ao artifício, na pose se está vivo. A imagem da fotografia não é analógica, metafórica, como a da pintura. Ela não remete a outra coisa que não ela. O rosto da fotografia é a precipitação química do real, sob o efeito da luz. Uma aparição por assim dizer ectoplasmática. A volta do morto.
A debandada do tempo
Uma espécie de alucinação, de fato. A percepção do objeto é verdadeira, real. O tempo do sujeito é falso. O objeto permanece, o tempo retira-se.
Dessa terrível alucinação, um exemplo particularmente dramático no último Roland Barthes: a velha mãe morta, criança, viva, em certa fotografia encontrada pelo autor.
Um real subitamente disponível - e intocável. Desesperadamente inerte e ofertado. Uma loucura.
Pontuando, no êxtase fotográfico, a revulsão. A volta, não tanto da imagem do outro amado mas, impresso na imagem, e se reconhecendo nela, do olhar que a escondia. O rosto está no olhar. Pois como reencontrar o rosto materno sem se deter em si? Onde achá-lo senão na ferida lancinante de sua justeza, gravada em nós?
Não a semelhança, legado raso da fotografia em que, sob certo olhar, o outro coincide consigo mesmo.
A justeza, que, num arrebatamento, na iluminação fugaz do "ponto", faz o outro coincidir conosco. O outro, somos nós. Velha, poética loucura."
Leda Tenório da Motta é doutora em Teoria Literária pela Universidade de Paris.