segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Livro: "Ética" - Coletânea (1992)


Como pensar a ética a partir das contradições de um mundo que, no mesmo espaço e ao mesmo tempo, produz uma ciência e intelectuais dedicados a pesquisar princípios de vida e armas de morte; progressos nas comunicações e mecanismos sutis e aberrantes de censura? Eis as questões: falso bem, falsa justiça, falsa liberdade, falsa virtude, que, ao criarem o homem da concórdia, da submissão e da boa-fé, o tornam duas vezes escravo: da superstição e das convenções.
O livro é composto por vários artigos, organizados por Adauto Novaes. São eles:
Cenários - Adauto Novaes
A tragédia grega e o humano - Nicole Loraux
Humanidade e justiça na historiografia grega, V-I a. C. - Catherine Darbo-Peschanski
As delícias do jardim - José Américo Motta Pessanha
A culpa dos reis: mando e transgressão no Ricardo II - Antonio Candido
O retorno do bom governo - Renato Janine Ribeiro
As fronteiras da ética: Maquiavel - Newton Bignotto
Política do céu (anti-Maquiavel) - Antonio Alcir Bernárdez Pécora
Dilemas da moral iluminista - Sergio Paulo Rouanet
Uma reinvenção da ética socialista - Nelson Levy
Estado e Terror - Paulo Sérgio Pinheiro
O eterno retorno do mesmo: tese cosmológica ou imperativo ético? - Scarlett Marton
A mentira: um capítulo das relações entre a ética e a política - Celso Lafer
Moralidade pública e moralidade privada - José Arthur Gianotti
O sujeito e a norma - Gerd Bornheim
A mulher e a lei - Maria Rita Kehl
Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo - Jurandir Freire Costa
Bom dia, senhor Coubert! - Jorge Coli
Ver o invisível: a ética das imagens - Nelson Brissac Peixoto
Ilusões perdidas - José Miguel Wisnik
Público, privado, despotismo - Marilena Chauí

Destaque para o artigo "Ver o invisível: a ética das imagens" de Nelson Brissac Peixoto, que segue, resumido abaixo:

Ver o invisível: a ética das imagens
Nelson Brissac Peixoto (In: A ética. pp. 301-319)

“Os gestos – como os rostos e as paisagens – são da ordem do inenarrável.”

(...)“Mas, se o rosto pode ser apreendido na paisagem, a paisagem também pode ser captada no rosto humano. O cinema clássico russo ensina, segundo Benjamin, que o ambiente e a paisagem só se revelam ao fotógrafo que sabe captá-los em sua manifestação anônima em um rosto humano. O que este cinema fez foi oferecer, pela primeira vez, uma oportunidade de aparecer diante da câmara a pessoas que nunca haviam pensado em fazer-se fotografar”.

(...)“A guerra – e o crime – instaura o domínio do instantâneo, das imagens de ação. O fotojornalismo, do qual o correspondente de guerra – além do repórter policial – é uma das modalidades. Imagens feitas no calor da hora, no ritmo dos acontecimentos. Imagens movidas a velocidade.

O oposto do repórter – e do fotógrafo de guerra – é aquele que vagueia, a câmera na mão, sem direção nem horário, pelas ruas. Ou aquele que, como um paisagista, contempla o panorama do mundo. Eles têm calma. Suas fotos têm uma coisa em comum: tempo. Eles sabem esperar. Deixar as coisas se configurarem ante os nossos olhos”.

(...)“Nós nos acostumamos a só ver aquilo que é dinâmico, que se agita ante os nossos olhos, que acontece. É disso que trata a foto jornalística. Mas e quando nada, aparentemente, está acontecendo? O vento soprando nas árvores ou uma mulher que levanta a mão, com graça, como se fosse soltar um balão. Aí não se vê nada. Mas, de fato, tudo está acontecendo. Essas cenas são delicadas demais ou grandiosas demais para ficarem impressas na retina habitual ao que é passageiro. São cenas praticamente imperceptíveis, a expressão num olhar, um jeito de andar ou uma luz particular incidindo sobre as montanhas.

Rostos, gestos e paisagens exigem contemplação. A fotografia atual, porém, só consegue ver a paisagem como palco, só consegue olhar para um rosto em busca de uma história. Mas retrata então não rostos, apenas poses e ações. É preciso saber ver, em determinadas imagens de hoje, aquilo que muitas vezes nos escapa. Essas imagens têm a beleza dos pequenos gestos e das grandes paisagens.

É preciso ter tempo para ver os rostos e as paisagens. Para se evidenciarem a força e a atmosfera que eles emanam. O drama interior das pessoas, a serenidade dos lugares. Tudo aquilo que não se estampa de imediato”.

(...)“Imagens que procurem olhar o mundo nos olhos, que tentem deixar as coisas no olhar. Perceber aqui o que faz as coisas falarem, a sua luz, o seu rio subterrâneo. Essa atitude – esse respeito pelas coisas – é ético. Olhar o mundo como uma paisagem, algo dotado de luz, de uma capacidade de nos responder ao olhar. Não se trata de procurar cenas naturais, mas de um modo de ver. Ver rostos e cidades como paisagens. Uma ética do olhar”.

(...)“Nas cidades, os olhos não vêem coisas, mas figuras de coisas que significam outras coisas. Ícones, estátuas, tudo é símbolo. Signos urbanos, como as placas, letreiros, anúncios... Na natureza, a paisagem é muda, árvores e pedras são apenas aquilo que são. Aqui, porém, tudo é linguagem, tudo se presta de imediato à descrição, ao mapeamento da cidade. O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz como se deve vê-la. Como é realmente a cidade sob esse carregado invólucro de símbolos, o que conta e o que esconde, parece impossível saber.

Seria preciso saber ouvir – como faz o poeta C. Milosz – o seu silêncio, como se fosse uma paisagem feita apenas de árvores e pedras. Deixar as coisas como tais falarem. Livrar-se dos símbolos que anunciam as coisas. Só assim se pode entender a linguagem da cidade.

Uma outra paisagem, então, se descortina. Se não nos limitarmos às descrições costumeiras dos turistas, dos fiscais, dos cartógrafos e dos moradores habituais das cidades. Uma outra maneira de ver, um outro paisagismo. Cidades invisíveis se deixam entrever, ao se buscar contemplar estas paisagens essenciais. Vista que até então passaram despercebidas dos lugares que já conhecemos, recantos que tinham ficado mergulhados na escuridão, edificações cujo perfil acabou esquecido”.

(...)“Quando a mídia parece querer transformar o mundo em imagens, multiplicando-as ao infinito, destituídas de necessidade interna, de significado, o problema está precisamente, diz Calvino, em apreciar a beleza do vago e do indeterminado. A beleza daquilo que justamente não tem imagem. O vento batendo nas árvores.

Um esforço para dar conta do aspecto sensível das coisas, de tudo aquilo que não é dizível. Sair na perseguição daquilo que escapa à expressão, da infinita variedade das coisas mais humildes e contingentes. Um aproximar-se das coisas com discrição e cautela, respeitando o que as coisas comunicam sem o recurso das palavras. Desenvolver o poder de evocar imagens in absentia. Imagens de tudo aquilo que não é, mas poderia ter sido. Imagens que não constem do repertório disponível, cada vez mais confundido com nossa experiência direta. ‘Fazer falar o que não tem palavra, o pássaro que pousa no beiral, a árvore na primavera e a árvore no outono, a pedra, o cimento, o plástico...”

Editôra: Companhia das Letras