quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Os mitos da atividade fotográfica

A partir de uma conversa sobre um texto do Ivan de Almeida, em que ele descreve o processo de fazer e selecionar uma foto, surgiu a questão de quantos mitos são cultivados pelas pessoas que se interessam pela fotografia de uma forma mais séria. Em especial, são cultivados por amadores, que idealizam o fazer fotográfico e os fotógrafos consagrados. Essas concepções muitas vezes limitam e dificultam a atividade criativa de quem fotografa, pois estabelece uma série de regras relativas a como as coisas devem ser. Os fotógrafos profissionais, em sua maioria, conhecem melhor o processo e não podem se dar ao luxo de limitar o próprio trabalho, e costumam cair menos nesse tipo de erro. Vamos pensar em alguns dos mais citados.

O mito do controle
Mostre uma foto para um fotógrafo amador e um dos comentários que você pode ouvir é: “está boa, mas esta árvore atrapalhou”. Você pode responder simplesmente: “mas ela estava lá” ou “é que eu estava sem a minha retroescavadeira na hora, senão a teria tirado dali”. A fotografia não é uma pintura. Não é possível controlar tudo o que vai sair na foto, mesmo quando se trabalha em estúdio. Pelo mesmo processo, mas da forma inversa, é possível ouvir elogios a uma foto que nada tem a ver com o trabalho do fotógrafo: “esta flor é muito bonita”. Pois bem, o que é bonito é o objeto e não a foto. Não há muito mérito aí, apenas um reconhecimento. É preciso entender então, o que está de fato sob o controle do fotógrafo (o corte, o ângulo, a escolha da lente, a leitura da luz, o conceito) e o que é característica da cena, pois assim é possível reconhecer o que é criação e dar o valor correto ao trabalho que foi feito.

O mito da originalidade
Tem-se uma idéia de que para ser bom, é preciso ser diferente. Isso pode ter sido verdade um dia, mas no mundo de hoje, saturado de imagens de todos os tipos e em que milhares de fotos são publicadas a cada segundo na internet, preocupar-se com ser original é uma atitude masoquista. É muito difícil fazer algo novo, e mais difícil ainda fazer algo novo todos os dias. Faz muito mais sentido ter uma produção coerente, coesa e significativa, mesmo que seja apenas do ponto de vista pessoal, do que querer ser diferente. Até porque ser diferente sem conteúdo não quer dizer nada. Outra faceta do mito da originalidade é que não se pode “copiar” um estilo. Ora, todos os grandes artistas são conscientes da influência que sofreram. Dificilmente se vai longe quando se começa do zero. É permitido ser influenciado, é permitido reler o trabalho de outras pessoas. Isso faz parte da arte e não diminui o que você faz.

O mito da foto única
Eu gosto bastante de ver em uma exposição uma obra pronta, de qualquer tipo, junto com os diversos estudos e esboços que o artista fez preliminarmente. Isso mostra que as boas obras de arte não são fruto de um rompante intenso e apaixonado. Geralmente, são fruto de um trabalho árduo e sistemático em que diversas possibilidades são testadas, resultados organizados, elementos categorizados etc. Da mesma forma, é muito interessante ver contatos de fotógrafos famosos e ver o quanto de suas fotografias são descartadas. Bons fotógrafos não fazem apenas uma foto. Fazer muitas, e escolhem as melhores. Para fazer uma foto boa, é preciso fazer dezenas ou centenas de “ruins”. E não há nada de errado com isso, faz parte do processo. E aqueles que olham para esse processo buscando o que deu certo ou não têm mais chance de conseguir bons resultados de forma consciente.

O mito da foto pronta
Este é um mito originário da época do filme e que, surpreendentemente, se mantém nos tempos digitais. Antigamente, fazíamos as fotos, deixávamos no laboratório e recebíamos cópias ampliadas perfeitas, bem equilibradas em relação à luz e às cores (salvo algum desastre). O problema é que não se via que o funcionário do laboratório fazia cortes, corrigia cores, equlibrava a exposição e outras coisas. E hoje, quando podemos ver e controlar esse processo nos programas de edição de imagens, temos uma idéia de que isso significa trapacear, e que os bons fotógrafos não precisam disso. Entretanto, um fotógrafo realmente bom procurará fotografar no sentido mais amplo, que é de processar as suas fotografias depois do trabalho com a câmera. Se negar a fazer isso significa jogar fora pelo menos 50% da possibilidade de criação envolvida no processo. Ao selecionar as fotos, ao cortar, alterar exposição, cores, luzes etc. ele está criando muito mais do que no momento em que aperta o botão da máquina. E a fotografia é apenas uma interpretação das coisas: ela pode ser reinterpretada de diversas formas sem perder o seu valor por causa disso.

O mito do instante decisivo
Muitos fotógrafos amadores se sentirão ofendidos se alguém qualificar a fotografia como um mero apertar de botão. No entanto, muitos deles confirmam essa concepção ao acreditar que a fotografia é feita exclusivamente na câmera. Tende-se a supervalorizar o equipamento e acreditar que toda a atividade fotográfica se resume à sua operação. Logo, um bom fotógrafo é aquele que sabe mexer numa câmera, que sabe usar controles manuais — ou seja, que tem o total controle da máquina no tal instante decisivo. No entanto, a fotografia é muito mais ampla do que isso. Ela começa a ser feita muito antes de se pegar na máquina e termina muito depois. O fotógrafo pode escolher reconhecer esse processo ou não. O planejamento, a escolha do assunto, a expressão de um conceito, a leitura da luz são exemplos da fotografia anterior à câmera. Selecionar e descartar fotos, processá-las num editor de imagens, selecionar o suporte, imprimir, ampliar, pendurá-las na parede ou vendê-las são elementos da fotografia após a câmera. Quem reconhece tudo isso e entende que operar a câmera é apenas mais um elemento nessa cadeia tem mais chance de conseguir boas fotos.

Esses são apenas alguns de muitos outros mitos possíveis. O fundamental é que essas crenças levam a uma visão distorcida da fotografia, em que se tem uma série de regras sobre o que é certo ou é errado. Mas, se tratando de processos criativos, é contraprodutivo se autolimitar de forma inconsciente, sem questionar as regras que se está obedecendo. Cada um é livre para entender a fotografia de qualquer forma, seja de uma forma mais restrita ou mais ampla, mas que isso seja feito a partir dos próprios interesses e objetivos, não a partir de concepções rígidas e pré-históricas que nem se sabe porque estão sendo aplicadas.

A fotografia amadora deveria ser muito mais livre, uma vez que não é encomendada nem precisa seguir um determinado padrão. No entanto, ao se apropriar, sem questionamento, de regras que apenas cerceiam as possibilidades, ela se torna mais engessada do que a fotografia profissional. Não é paradoxal?

Matéria extraída de : Câmera Obscura
Autoria: Rodrigo F. Pereira
Dica: Luis Eustáquio