sábado, 23 de julho de 2011

Saiba o que é um "Retrato Mortuário"

Retrato mortuário do meu tataravô Francisco Messa (c) Desconhecido. Data provável: 1890.
Recentemente recebi como herança uma caixa de fotografias antigas e, dentre elas, uma foto de meu tataravô morto fotografado como se estivesse vivo. Eu já conhecia essa modalidade de fotografia, mas nunca havia possuído uma. A curiosidade e o interesse artístico me fez sair à procura de informações, quando recebi a indicação de ler um artigo escrito por Déborah Rodrigues Borges da PUC de Goiás denominado "Imagens da Morte: Usos da Fotografia Mortuária em Contexto Familiar em Bela Vista de Goiás". Vejam o que ela diz:

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Segundo Jay-Ruby (1995), a fotografia mortuária é uma prática que teve início quando do advento do daguerreótipo, na Europa, cuja descoberta foi anunciada oficialmente em 1839. Entretanto, é importante ressaltar que a prática de retratar os mortos não surge com a fotografia. Já existia, anteriormente, toda uma tradição de representação imagética do moribundo e do morto, especialmente em pinturas.

Para Riera (2006) a expressão fotografia mortuária – ou fotografia post-mortem, ou fotografia fúnebre – se refere a todos os tipos de fotos realizadas após a morte de alguém, incluindo as que são encomendadas pelos familiares, as que se utilizam nos veículos de comunicação e as imagens forenses, por exemplo.

Entretanto, consideramos em nosso estudo apenas as imagens mortuárias no contexto familiar, tomadas como meio de manutenção da memória do morto.

O desenvolvimento técnico do artista foi um fator importante dentro da história da fotografia mortuária. Os artistas se utilizaram do tema do retrato fúnebre para aprimorarem seus conhecimentos sobre a nova técnica de produção de imagens. Durante todo o século 19, fotografar os mortos foi uma atividade desempenhada correntemente pelos fotógrafos na Europa e nas Américas, a ponto de muitos deles publicarem anúncios em veículos de comunicação, propagandeando suas habilidades em fazer belos retratos de pessoas falecidas, atendendo, assim, a uma demanda social preexistente.

Segundo relatam Mellid (2006), Riera (2006) e Bolloch (2002), o uso do tema do retrato fúnebre pelos primeiros daguerreotipistas ocorreu, também, como forma de aprendizado e aperfeiçoamento da nova técnica. Afinal, como ressalta Mellid, os mortos eram os melhores modelos num momento em que os tempos de exposição necessários eram muito grandes. A fotografia mortuária era, portanto, uma boa oportunidade para que os daguerreotipistas exercitassem a confecção de retratos. O autor ressalta, ainda, que a quietude dos falecidos favoreceu, de certa forma, a proliferação desse tipo de retrato, já que o fotógrafo possuía certa liberdade de manipulação, como se se tratasse de uma natureza morta. Havia, portanto, infinitas possibilidades de disposição do morto em casa ou no estúdio, sob diversos arranjos de luz e com o uso de diferentes atributos, a fim de embelezar o morto e a cena.

O costume de fotografar os mortos persistiu com maior força na cultura cristã ocidental até meados do século XX. Segundo o professor Mauro Koury (2001), a popularização da fotografia mortuária ocorreu, sobretudo, entre os anos de 1920 e 1950, quando é utilizada por várias camadas da população. Entretanto, embora o hábito de fotografar os mortos tenha se mantido na passagem do século 19 para o século 20, Jay-Ruby (1995) afirma que há uma diferença na prática desse tipo de representação de um século para o outro: no 19, os fotógrafos anunciavam e discutiam abertamente a fotografia mortuária, ao passo que, no 20, esse tipo de prática já estava de tal forma consolidada que era desnecessário anunciar tais serviços ou discutir suas técnicas de produção.

Jay-Ruby (1995) identifica três estilos de representação do defunto nos retratos mortuários. Estes estilos surgem no século 19 e permanecem no 20, embora um deles, apenas, torne-se mais recorrente. De acordo com o autor, dois desses estilos foram elaborados como mecanismo de negação da morte, ou seja, para simular que o retratado não estava morto, enquanto uma terceira variação registra a real condição do morto.

No primeiro estilo, denominado “O Último Sono”, representa-se o morto como se estivesse, na verdade, repousando. Na figura 1, temos um exemplo desta tipologia, na qual vemos o retrato fúnebre de uma mulher trajando um sóbrio vestido branco (cor associada à pureza, o que nos leva a crer tratar-se de uma moça que morreu antes do casamento – uma virgem), bem penteada e disposta sobre o que parece ser uma espécie de sofá ou divã coberto com mantas e almofadas. A retratada tem sobre si um livro fechado, sobre o qual repousam os dedos da mão esquerda. A fotografia, em vez de remeter diretamente à condição da falecida, simula que a moça acabou dormindo enquanto fazia uma leitura. A cena inspira serenidade e descanso, e parece ter sido organizada a partir da concepção de uma bela morte romântica – à qual os fotógrafos recorriam frequentemente para a representação do morto.

O segundo estilo de fotografia mortuária é denominado “Vivo, embora Morto”, do qual vemos um exemplo na figura 2. Neste tipo de imagem pretende-se eternizar a figura do morto como se, na verdade, estivesse vivo. Em muitas dessas fotografias, os retratados, crianças e adultos, são posicionados sentados em poltronas, cadeiras ou sofás, e têm os olhos abertos. Aliás, um dos artifícios utilizados pelos fotógrafos para mostrar os olhos do morto – ato fundamental para que ele aparentasse estar vivo – era usar uma colher de café para auxiliar no correto posicionamento do globo ocular, sem que este se apresentasse torto em sua órbita (RIERA, 2006). Quando este expediente não tinha um bom resultado, podia-se, ainda, fazer retoques no negativo ou nas cópias, pintando os olhos abertos.

Esses dois estilos - “O Último Sono” e “Vivo, embora Morto”, colocam-nos diante do seguinte paradoxo: a família sabe que seu ente querido está morto mas, ainda assim, opta por fazer uma fotografia como se ele estivesse vivo. Por que isso ocorria?

Na verdade, como bem expõem Jay-Ruby (1995) e Koury (2001), não há necessariamente uma razão única para que as pessoas fotografem seus mortos, assim como também não há uma relação simples de causa e efeito entre a produção e o uso destas imagens. Algumas delas, inclusive, resultavam bizarras ou feias, mesmo, como em alguns casos em que os retratados apresentam olhos desalinhados, hematomas e ferimentos visíveis.

Ora, nestes casos, assim como em vários outros – se não, mesmo, em todos os casos de fotografia mortuária familiar – parece ter havido, sobretudo, uma necessidade da família em preservar algum registro visual de uma existência que desaparecia. Percebe-se, aí, um exemplo da força que a imagem possui, dentro da mentalidade coletiva ocidental, como artefato de preservação da memória. É um modo de garantir uma permanência material, neste mundo, daquele que morreu.

O terceiro estilo de fotografia mortuária persiste como principal modelo no século 20, tendo sido os dois primeiros mais comuns no 19. Neste tipo, denominado “O morto como morto”, encontram-se elementos que permitem a interpretação exata de que o retratado está, de fato, morto.

São imagens em que se vê o retratado dentro do caixão, ou estendido sobre uma superfície – uma mesa, frequentemente – e adornado com flores, cercado de velas e cruzes. Em muitas destas fotografias, mais do que uma imagem recordatória do morto, o retrato mortuário apresenta um registro da opulência do velório e/ou das pessoas que estiveram presentes – seja familiares ou autoridades importantes – como forma de reafirmar a posição social do retratado e a coesão familiar.

Um exemplo desta função da fotografia mortuária pode ser visto na figura 3, na qual vemos o defunto estendido sobre uma superfície forrada com tecidos ornamentados com franjas e bordados. Ao fundo, foram dispostas cruzes feitas co flores. Percebe-se que, neste caso, mais do que retratar as feições do morto como uma última recordação, a família optou por fazer um registro desse ente querido no ambiente do velório, com toda a opulência permitida pela condição financeira do retratado, que foi um bem sucedido empresário peruano.

No Brasil, assim como ocorre com outros tipos de retratos, veremos que, especialmente nos grandes centros econômicos, como São Paulo, haverá uma expectativa das famílias mais abastadas, burguesas, de reproduzir os padrões de representação europeus.

Em uma das várias fotografias mortuárias feitas por Militão Augusto de Azevedo, vemos uma mulher com um traje preto, provavelmente a mãe, tendo no colo uma criança morta vestida de branco. Nota-se que, apesar de a mulher segurar o filho morto – fato que, pressupõe-se, geraria comoção – ela mantém uma postura contida, civilizada, para a foto. A cena foi produzida, assim como em muitos outros retratos da época, de um modo que pudesse se tornar mais um digno registro da saga familiar – no caso, uma família burguesa, num contexto social, cultural e econômico com deliberada inspiração européia."

Muito curioso, não?

Na sequência a autora fala mais especificamente da fotografia mortuária em Goiás.

Para ler o texto na íntegra e ver as figuas mencionadas acesse o pdf em:
https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tde/2766/1/Dissertacao%20Deborah%20Rodrigues%20Borges.pdf

Veja também a bibliografia utilizada pela autora:


BOLLOCH, Joëlle. Photographie après décès: pratique, usages et functions. Le dernier Portrait. Musée d’Orsay, Paris: Réunion des Musées Nationaux, 2002.

KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro (org.). Você fotografa os seus mortos?. Imagem e memória – ensaios em Antropologia Visual. Rio de Janeiro: Garamond, 2001.

LEMOS, Carlos A. C. Retratos quase inocentes. São Paulo: Nobel, 1983.

MELLID, Marisol Romo. Fotografiar a los muertos.


RIEDL, Titus. Últimas Lembranças: Retratos da morte, no Cariri, região do Nordeste Brasileiro. São Paulo: Annablume, Fortaleza: Secult, 2002.

RIERA, Alberto. Introducción a la fotografia post mortem.
Disponível em http://www.caborian.com/20060321/introduccion-a-la-fotografia-post-mortem/

RUBY, Jay. Secure the shadow: death and photography in América. USA: The MIT Press, 1995.