terça-feira, 19 de julho de 2011

Livro: "O que vemos, o que nos olha" - Georges Didi-Huberman (1998)

"Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olho trás consigo sua névoa (...) Os pensamentos binários, os pensamentos do dilema são portanto incapazes de perceber seja o que for da economia visual como tal. Não há que escolher entre o que vemos (com sua conseqüência exclusiva num discurso que o fixa, a saber: a tautologia) e o que nos olha (com o embargo exclusivo no discurso que o fixa, a saber: a crença). Há apenas que se inquietar com o entre."
Georges Didi-Huberman


Leonardo Barros Soares do site Recanto das Letras publicou:

"Há muito tempo eu não lia um livro tão difícil, escrito numa linguagem tão barroca e abordando um tema tão complexo como o que trata o livro "O que vemos, o que nos olha", do filósofo francês Georges Didi-Huberman. Expoente da nova Teoria francesa da Arte, Didi-Huberman é um tarimbado leitor de Freud e Lacan que, com espantosa erudição e fôlego discursivo invejável, propõe ao leitor o embarque no que ele chama de uma fábula do olhar, uma abordagem em profundidade da experiência visual em sua perspectiva metapsicológica e antropológica.

Minha proposta no presente texto, quero sublinhar, não é de resenhar a referida obra, mas, antes, buscar nela alguns elementos que considero importantes recursos a serem utilizados na ampliação da compreensão de um fenômeno que venho pesquisando há algum tempo e que redundou em meu trabalho de conclusão do curso de Psicologia, a saber, a questão da produção subjetiva em jovens autores de atos infracionais que tiveram suas imagens veiculadas por programas de jornalismo policial em Fortaleza. A utilização de algumas das noções trabalhadas por Didi-Huberman como “caixa de ferramentas” não significa, todavia, uma apropriação indébita ou frívola destas, mas, sim, um arriscar-se na aventura de, a partir da produção intelectual de outrem, produzir com ela outra coisa, um “filho monstruoso” que possa ser reconhecido pelo “pai”, mas que vá além dele.

Isto posto, um primeiro ponto que gostaria de abordar diz respeito à tese fundamental do livro, exposta logo em suas primeiras linhas e que serve de fio condutor a toda a polifônica argumentação engendrada pelo filósofo francês: “O que vemos só vale - só vive- em nossos olhos pelo que nos olha”.

Afirmação elegante e desconcertante, pois nos coloca, logo de início, a obrigação de pensarmos que, no mundo, não há apenas o sujeito que olha objetos e outros sujeitos, como se fosse uma torre nômade de observação perspectivista, fragmentária e ainda assim onipotente, mas também o sujeito que é olhado, igualmente e incessantemente, por um Outro que nos escapa e que nos confronta com uma cisão em nós mesmos: somos sujeitos cindidos porque o Outro - nossa mãe, nosso chefe, um quadro de Van Gogh,um pote de manteiga, uma música - nos inquieta e destrói nosso sonho infantil de completude.

Mais profundamente e cotejando esta reflexão inicial com nosso objeto de estudo, Didi-Huberman nos coloca a difícil missão de pensarmos se as imagens dos jovens que coletamos de um programa de jornalismo policial sobreviveram em nosso olhar. Posso constatar, sem muitas dificuldades, que dificilmente esquecerei-me daquelas figuras esquálidas, daquele cortejo de condenados que me foi tão familiar nos meses em que fiz minha coleta de programas para meu trabalho monográfico. De alguns consigo lembrar detalhes da vestimenta, rememorar trejeitos, sotaques e expressões faciais. Não há duvida de que sobreviveram às intempéries do tempo. Mas por que eles sobreviveram?

A resposta provável, a partir do livro, seria a de dizer que eles sobreviveram porque, de alguma forma, eles me olharam. É aí que reside, a meu ver, toda a importância, inclusive política, da argumentação de Didi-Huberman: se eles me viram foi porque há algo de humano nas imagens, um fundo antropomórfico que impede de que os tornemos meros animais exibidos num circo midiático e os consideremos como seres humanos. O fenômeno a ser investigado aí é o da inquietante estranheza da suspensão dialética do pensamento entre a consideração dos jovens que aparecem num programa de jornalismo policial como meros “marginais”, objetos reificados e inamovíveis, ou como seres humanos, dotados de história e identidade pessoal. No que me concerne eu os considerei sob o prisma do segundo termo, mas, e o conjunto dos espectadores medianos que cotidianamente se alimentam com a imagem da violência urbana que encontra nesses jovens sua maior expressão? São homens da tautologia - entendem que o que vêem se encerra ali mesmo, sem ponderações ou mediações críticas possíveis- está evidente, aquele indivíduo é um bandido cruel, e somente isso - ou são homens da crença - acreditam que a imagem contém um resíduo simbólico que os faz conjeturar sobre o que vêem- esse marginal vai ser solto, depois vai voltar e fazer a mesma coisa, e as autoridades não tomam uma providência...

Em "O que vemos, o que nos olha", o filósofo Didi-Huberman se aventura árido universo da arte minimalista para demonstrar, cabalmente, que mesmo naquela floresta árida de “objetos específicos”- cubos, paralelepípedos, cones e todas as demais formas geométricas características das obras de artistas do calibre de Donald Judd, Tony Smith e Frank Stella – é possível “desencavar” a potência relacional do humano, a marca do demiurgo mortal que impossibilita o pensamento de formas “essenciais” ou descoladas de seus contextos de produção. Da mesma forma que é impossível pensarmos um objeto que seja tão somente sua “pura idéia”, é impossível pensarmos que imagens são produções isoladas de seus contextos materiais de feitura e do ambiente humano que os compõem.

Neste sentido, outro ponto importante que considero ser tocado, dentre outros vários pelos quais não enveredarei aqui para não ampliar em demasia o escopo deste texto, é da antropologia da forma esboçada por Didi-Huberman em sua obra. Para o autor é importante que reconheçamos a forma das coisas em sua materialidade – ou seja, compreendê-la em sua imanência que unifica uma matéria-textura, uma configuração singular e um sentido e não numa espécie de transcendentalismo teleológico – em sua organicidade – que anuncia seu caráter dinâmico e processual, nunca acabado ou impossibilitado em sua potência rizomática de agenciamento de outros sentidos – e em sua contextualidade, que é o ponto de vista ampliado deste esboço de uma teoria para colocar as formas em relação com outros saberes, como o saber histórico, psicanalítico e antropológico.

Minha compreensão é a de que uma teoria antropológica das formas assim como esboçada na obra do filósofo francês poderá nos auxiliar sobremaneira a potencializar a análise da construção discursiva dos modos de exibição dos jovens autores de delitos nos programas de jornalismo policial. A tríplice consideração da forma a que nos exorta Didi-Huberman poderá conferir ainda mais consistência às nossas investigações, necessariamente superficiais em nosso trabalho de conclusão de curso devido aos seus limites de abrangência obrigatórios.

Por fim, gostaria de afirmar que, não obstante o inegável valor teórico de "O que vemos, o que nos olha", estou cônscio de que o autor nos fornece apenas pistas para uma investigação, e que o trabalho duro ainda está por ser realizado. Articular tal miríade de conceitos com artefatos de pesquisa funcionais e pertinentes ao objeto de nosso estudo será o desafio a ser enfrentado a partir de agora. Um desafio que desejo a todos os pesquisadores que encontrem em seus percursos acadêmicos.

Prefácio de Stéphane Huchet
Tradução de Paulo Neves
Editora 34
1998