quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Livro: "Estética da Fotografia - Perda e Permanência" - François Soulages (2010)


Clicar como quem pinta
Rosane Pavam
Jorge Luis Borges julgou mais difícil ser bom leitor do que escritor. Concordar com o autor argentino não foi difícil, já que toda excelência ficcional só sobreviveu na memória coletiva quando houve um leitor para notá-la. Agora, quase o mesmo diz o francês François Soulages não sobre a literatura, mas sobre a aventura do instante decisivo. Seu sedutor ensaio Estética da Fotografia – Perda e permanência (Senac, 384 págs., R$ 75) sustenta que só um observador pode transformar em arte o ato de clicar imagens, mais corriqueiro a cada dia.
“A obra cria o criador”, afirma Soulages em entrevista por e-mail a CartaCapital. Seu livro instiga o leitor não pelas respostas que dá, mas pelas perguntas que faz. A escritora Susan Sontag já apontava, nos anos 70, o valor que ganham aos nossos olhos, com o passar dos anos, as simples e mal tiradas fotos familiares. Ciente dessa verdade, Soulages quis saber mais. Seu propósito foi entender de que modo a fotografia passou de “não-arte” a “arte” no transcorrer do tempo.

Entre os muitos parágrafos nos quais expõe uma estética para a fotografia, o pensador coleciona histórias exemplares dessas situações, que envolvem grandes fotógrafos como Eugène Atget (1857-1927). No fim do século XIX, o francês era movido por grande curiosidade. Queria captar a rua em movimento, a luz de um dia. Mas não havia uma correspondência tecnológica, no material fotográfico, a sustentar suas pretensões. O equipamento pesado não lhe permitia flanar em busca do instante. Tudo isso entrou em perspectiva, contudo, quando mudou a sensibilidade dos filmes.

Atget não se deslocava. Não poderia, portanto, agir como o compatriota Henri Cartier-Bresson (1908-2004) anos depois, sempre de posse de uma câmera portátil. Mesmo imóvel diante de seu objeto, e ao captar devidamente a perspectiva e a luz, Eugène Atget entrou na história da fotografia como um dos primeiros responsáveis a registrar o pulsar da rua. A foto Passy, passage des eaux, tirada por volta de 1901, mostra uma perfeita escadaria e o calçamento de pedras lado a lado, rumo ao ponto de fuga, assemelhado a um portão. As linhas geométricas são perfeitas, como as de uma pintura da Renascença. A simetria, exemplar. E a iluminação, obtida em dia cinzento e frio, faria inveja a qualquer fotógrafo contemporâneo.

E havia mais. Com a foto, Atget demonstrava o caminho de pedras, árduo e acinzentado, sobre o qual um caminhante deveria andar em busca de seu objetivo, claramente apontado na foto, ao fundo. Toda a poesia que há nesta imagem, contudo, jamais almejou o status artístico. Atget julgava, com registros dessa natureza, promover uma coisa mais simples. “(O que faço) são documentos, tenho milhares deles”, respondia o artista aos que viam em suas imagens obras-primas merecedoras de exposição. “Se você quiser publicá-las, não coloque meu nome nelas”, pediu ele a Man Ray.

Atget não concebeu seu trabalho como “obra”. Ele ilustrou catálogos para quem os pagasse. O tempo, que transforma o observador, também acolheu suas imagens com um sentido novo, como observa o ensaísta Jean-Claude Lemagny. Para ele, toda fotografia pode ser considerada sob o ângulo do documento ou da obra de arte. Não se trata de duas espécies de foto. O olhar de quem a considera decide.

Assim foram os casos examinados pelo filósofo. Embora se declarassem documentaristas de seu tempo, fotógrafos da realidade e mesmo das atrocidades, à moda do britânico Don McCullin, recusaram o rótulo artístico como uma quase-ofensa. McCullin, de 75 anos, fala em fotos “fortes”, em lugar de “boas”. Tem a certeza: “Minhas fotografias são documentos, não são ícones, não são obras de arte para pôr na parede”. Entretanto, como observa Soulages, “a estética da criação não é a da recepção”, e uma imagem concebida como “sem-arte” pode ser deslocada para o sentido artístico, mesmo a contragosto de seu autor.

“A passagem do sem-arte à arte é uma especificidade da fotografia”, sustenta o autor François Soulages em entrevista. “Como uma coisa só assume seu sentido em função das relações que mantém com outras coisas, a arte fotográfica deve ser estudada em função de sua relação com outras artes.” Que tal a pintura? Cartier-Bresson foi formado dentro dela, e os fotógrafos de que gostava tinham “um olho de pintor”. O capítulo que Soulages lhe dedica é um dos melhores, o que não chega a surpreender. Igualmente excelente no tocante à escrita, Bresson deixou explícitos seus raciocínios.

O fotógrafo quis descobrir, a partir de um mundo aparentemente desestruturado, sua “estrutura significativa”, de onde nasceria a beleza fotográfica. Bresson era apaixonado por geometria. Até a escolha do formato da máquina fotográfica, a seu ver, desempenhava um papel importante na expressão de um assunto. O visor não poderia ser um quadrado porque, pela semelhança dos lados, tenderia a tornar as imagens estáticas. “Quase não há quadros quadrados”, ele defendia. O visor retangular, pelo contrário, ajudaria o fotógrafo a alcançar a proporção áurea (a tradução deste livro a intitula “número de ouro”), a escolha por excelência dos humanistas do Renascimento.

Se a estrutura da foto era bela, dizia Bresson, isto, a seu ver, ocorria porque remetia à pintura. Mas, para Bresson, a fotografia não poderia rivalizar com aquela arte. “Nós atingimos uma coisa menos permanente que os pintores”, acreditava. O fotógrafo deveria enxergar como um pintor, sem esperar, de posse de uma câmera, transformar-se em um. Isto porque, ao contrário daqueles, os fotógrafos dependeriam de momentos únicos, transcorridos sem a sua interferência. Os artistas da câmera seriam, em verdade, como caçadores, tranquilamente à espreita da caça. “É necessário ser sensível, tentar adivinhar, ser intuitivo” para fotografar bem, dizia. Mas a vivacidade, a intuição e a geometria deveriam ser cultivados se eles almejassem à essência.

Bresson não fala em arte. Fala em acaso. Em não “metralhar” insistentemente em direção ao objeto. Em nunca montar uma cena, e em jamais utilizar a cor. “A emoção, encontro-a no preto e branco. Ele transpõe, é uma abstração, não é normal. A cor, para mim, é o campo específico da pintura”, ensinou. Neste livro, o francês figura como eterno mestre. Bem que Soulages poderia pular da estética à história. Não há, até hoje, embora “absolutamente necessária”, uma história da fotografia. E não será Soulages a iniciar essa “tarefa inacabável”. Quem se arriscaria?

Fonte: Carta Capital, edição 591
http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=10&i=6446